Trechos
da carta
(...)
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que cobrisse sua vergonhas.
Nas mãos traziam arcos com sua setas. Vinham todos rijamente sobre o
batel, e Nicolau Coelho lhes fez sinal que posassem os arcos. E eles
os pousaram (...) A feição é serem pardos, maneira de
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos (...) Não
fazem o menor caso de encobrir ou mostrar suas vergonhas; e nisso têm
tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de
baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do
comprimento de uma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão,
agudo nas pontas como furador (...) Os cabelos são corredios. E
andavam tosquiados, de tosquia alta (...) E um deles trazia por baixo
da solapa, de fonte a fonte para trás, uma espécie de cabeleira de
penas de aves amarelas (...) Isto me faz presumisse que não têm
casas nem moradas a que se acolham, e o ar, que se criam, os faz
tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas
(...)
(...)
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi nem vaca, nem cabra,
nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada
seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há
muito, e dessa semente de frutos, que a terra e as árvores de si
lançam, e com isto andam tais e tão rijos e tão médios que o não
somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos (...)
(...)
Está terra, senhor, será tamanha que haverá nela bem vinte ou 25
légua por mar, muito grande, porque a estender olhos, não podíamos
ter senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela,
até agora, não pudemos saber se há ouro, nem prata, nem coisa
alguma de metal ou ferro nem o vimos. Porém a terra em si é de
muito nos ares, assim frios e temperados, como os de entre Doiro e
Minho, porque nesse tempo de agora os achávamos como os de lá. As
águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por causa das águas que
tem. Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar, me parece que
será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza nela deve lançar.
E
aqui aí não houvesse mais que ter esta pousada para esta navegação
de Calicute, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela
cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentando da nossa santa fé.
E
nesta maneira, Senhor., vou aqui a Vossa Alteza contar do que nesta
terra vi.
Deste
Porto Seguro, de vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro
dia de maio de 1500.
(Pero
Vaz de Caminha)
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